Vou contar-vos uma história verídica que uma das intervenientes me contou. É uma história de duas amigas como quaisquer outras, duas amigas de há vários anos. Conheceram-se após a mais nova ter casado e ido morar para perto da outra. Eram vizinhas e tornaram-se amigas. Eram completamente diferentes em personalidade. A mais velha muito alegre e extrovertida, nunca parava em casa, percorria as casas dos vizinhos com alegria, visitando-os e conversando com eles... A mais nova era mais caseira e de poucas conversas, mas tomou uma profunda amizade a esta vizinha que lhe vinha bater à porta para pedir uma raminho de salsa. Ficavam a conversar alegremente durante horas e por vezes chegava a pensar: ela nunca mais se vai embora e eu tenho tanta coisa para fazer...
Passaram-se alguns anos. A amizade solidificou-se. Eram agora grandes amigas e companheiras. Partilhavam muitas coisas. Os filhos eram amigos, os maridos eram amigos.
Um dia a mais velha queixou-se de fortes dores de cabeça e após ter ido ao médico e feito vários exames, foi-lhe diagnosticado um tumor maligno na cabeça, com mau prognóstico e já dificilmente operável. Mas mesmo assim, esta mulher, cheia de vida e alegria quis arriscar e decidiu ser operada, sabendo de antemão que poderia ficar inválida numa cama.
A operação era muito arriscada, mas era arriscar ou ter pouco tempo de vida...
O que se temia, aconteceu. Apesar de os médicos terem feito tudo o que podiam, a senhora ficou presa à cama e já não se conseguiu mais levantar. E com o passar do tempo foi piorando. Perdeu a força nos membros, a capacidade de falar, mas ao menos ainda continuava viva. Já não poderia visitar os vizinhos e os amigos, já não podia percorrer a vizinhança de alto a baixo, conversando alto e rindo, mas valiam-lhe ainda os amigos que iam lá a casa distraí-la...
E assim anos se passaram, muitos anos... E com os anos, a amizade que tinha com essa vizinha também foi passando. Ela tinha-se revelado fraca e cobarde. Não teve coragem para lidar com a doença da amiga e afastou-se. Teria medo de a ver naquele estado? Teria falta de coragem para lhe falar, sabendo que a amiga não poderia fazer o mesmo? Teria vergonha de contar a sua felicidade e as suas conquistas, sabendo que a amiga não tinha nada disso?
O que é certo é que os anos passaram e, com eles a doença foi piorando mais e mais... Os invernos rigorosos não perdoavam e com eles surgiam pneumonias e infecções difíceis de combater... Mas ela era forte. Resistia. Só tinha uma mágoa na sua vida. A sua amiga ter deixado de a visitar.
Mas num destes dias de inverno rigoroso, frio e cinzento, em que lutava contra mais uma infecção e os seus olhos mal se conseguiam abrir, ouve a campainha. Pouco depois vê surgir à porta a sua amiga, que há tantos anos não via. Não chorou, não a recriminou, não estava chateada com ela. Simplesmente feliz por a ver. Esboçou um sorriso triste. E então a amiga contou-lhe tudo o que não tinha contado durante todos aqueles anos que se tinham passado. Contou da sua vida, dos filhos, das vizinhas. Relembrou velhos tempos em que conversavam alegremente quando ela ia lá a casa usando como desculpa ir buscar uma pitada de canela. Nesses tempos era a amiga mais velha que falava alegremente, enquanto a outra ouvia. Agora era o contrário. Mas não havia tristeza nos seus olhares. Sempre tinham sido amigas e agora, de novo, a amizade falava mais alto. A amiga deu-lhe um beijo e despediu-se, dizendo que voltaria para vê-la em breve. Mas isso não aconteceu, porque passados 3 dias a doença foi mais forte e venceu-a.
Finalmente ela pôde descansar, dizia-me a amiga mais nova em confidência. Parecia que estava à espera de eu a ir ver, para poder descansar em paz... E parecia que sabia que ia ter pouco tempo para aproveitar a vida, pois antes da doença saiu, andou, conversou, viveu a vida como se não houvesse amanhã...
E, para ela não há amanhã. Amanhã, será o seu funeral.